Análise: Europa pode enfrentar uma ‘tempestade política’

Paul Mason

Editor de Economia

Parthenon (AP)Analistas dizem que eleições gregas podem trazer caos político

A noite deste domingo pode provocar uma tempestade na Europa: instabilidade política completa na Grécia, um novo presidente francês eleito em meio a uma onda de oposição ao plano de austeridade “Merkozy”, crescimento econômico despencando no continente e, por toda parte, o fortalecimento dos partidos não-centristas.

Em dezembro, depois que a desastrosa cúpula de Cannes desencadeou uma segunda crise da dívida na zona do euro, os países da UE finalmente se comprometeram com algum tipo de união fiscal.

O preço definido pela Alemanha e seus aliados do norte da Europa foi um novo tratado fiscal, assinado por 25 dos 27 membros da UE, que exigia orçamentos equilibrados pela eternidade e forçava alguns países a pisar no freio para cumprir a meta de 2014.

Austeridade obrigatória para um continente que já escorregava na direção da recessão. Mas resolveram dourar a pílula.

Soro

O Banco Central Europeu, que sempre havia resistido à flexibilização monetária quantitativa e a participar de planos de resgate em todo o continente, de repente abriu as torneiras concedendo três empréstimos de longo prazo aos bancos com taxas de juros de 1% e vencimento de três anos.

Isso foi como colocar um paciente muito doente no soro. Removeu a ameaça imediata de contágio da Grécia, e propiciou uma verdadeira operação de resgate daqueles que deram empréstimos à Grécia, mas não dos próprios gregos.

Isso, combinado à imposição de governos não-eleitos na Grécia e na Itália, e à eleição de um governo de direita pró-austeridade na Espanha, pareceu acalmar as coisas.

Então, por que elas voltaram a entrar em erupção?

Resultados limitados

A Espanha será resgatada pela Europa?

Em primeiro lugar, a adoção da austeridade por todo o continente parece ter afogado o que havia sobrado da recuperação da UE. A zona do euro entrou em recessão no fim do ano passado, está em recessão agora e parece que vai permanecer em recessão por, pelo menos, mais três meses.

Apesar de os bancos parecerem mais seguros, isso acontece às custas de uma redução do crédito, o que prejudica empresas e a confiança do consumidor.

Em segundo lugar, a injeção de dinheiro nos bancos teve resultados limitados. Eles depositaram a maior parte do dinheiro de volta no Banco Central Europeu com taxas de juros de 0,25%. Há indicações de que os empréstimos interbancários caíram e de que o crédito bancário para a economia real está em território negativo.

Em terceiro lugar, esgotou-se o tempo para o governo tecnocrata imposto, pelo menos na Grécia.

Caos grego?

As pesquisas eleitorais gregas indicam que as forças combinadas dos dois principais partidos alcançam 37%, com cerca de outros 37% para a esquerda (comunistas, trostkistas, eurocomunistas e verdes) e com o voto cristão nacionalista de direita despencando para 3% em favor dos fascistas do Amanhecer Dourado (5%), que apenas quatro anos atrás tinham deixado de existir.

Alemanha e países do norte exigiram um novo pacto

Se nenhum partido conseguir o número de votos necessário para governar e as eleições trouxerem apenas o caos político no país, pode haver um novo pleito, ou talvez algum tipo de golpe presidencial leve, ou mesmo um governo de esquerda que não tenha se comprometido apenas a lutar contra a austeridade, mas também, tecnicamente, a socializar a economia.

Nos dois últimos casos, isso colocaria em risco não apenas a permanência da Grécia na zona do euro, mas também a habilidade de cumprir o Tratado de Copenhague (que estipula que integrantes da União Europeia devem ser democracias) e o Tratado de Lisboa (que proíbe nacionalizações de estilo socialista).

Independente do que ocorra politicamente, parece claro que o “acordo” para Grécia reduzir sua dívida para 120% de seu PIB até 2020 por meio de enormes cortes e aumentos de impostos não será cumprido e o caminho para um calote está aberto, seguido de sua saída da zona do euro ou a criação de algum tipo de participação menor.

No entanto, por mais doloroso que seja para os gregos, a tragédia do país é apenas sinal dos problemas que devem afligir a combalida Europa.

A Espanha tem 25% de desempregados entre sua população de adultos. Seus bancos balançam próximos de outro pacote de resgate financeiro, reduzindo em grande escala os empréstimos para a economia real e o país pode ser forçado a buscar, para si mesmo, dinheiro de resgate do Fundo Europeu de Estabilização Financeira, o fundo interino do bloco.

Saída

Então nós chegamos à segunda-feira e o que acontece? Os mercados acreditam que Hollande ganhe, mas também que ele não deve cumprir suas ameaças de renegociar o pacto fiscal e os principais partidos gregos devem formar uma nova coalizão que mantenha o país de pé.

O Banco Central abriu as torneiras para novos empréstimos

Mas a revoada dos votos europeus abandonando os centristas está mudando as coisas. A classe política estabelecida há décadas ao redor de partidos de centro, pró-globalização já percebe em alguns países estar próxima de um terremoto político.

O crescimento da direita nacionalista em Holanda, Dinamarca, Finlândia, Itália, etc sempre pareceu possível de ser contida, ou excluída por coalizões mais ao centro.

Mas se estas coalizões centristas não governam a contento, ou fazem exigências duras demais à direita nacionalista, então os governos europeus, um de cada vez, são forçados a formar novas coalizões engessadas pelos tecnocratas e protegidas contra os extremistas.

A situação se tornaria frágil quando os governos todos forem comandados por tecnocratas.

A saída, claro, é conseguir crescimento. Essa foi a promessa do pacto fiscal original e o que Hollande, além de, e por exemplo, os socialistas portugueses (e de forma mais sutil o FMI) se referiu quando pediu por cláusulas de “acentuação de crescimento” nos planos de austeridade.

Mas isso não vai acontecer a não ser que alguém estimule a demanda: seja uma recuperação rápida no resto do mundo (os EUA estão claramente em recuperação). Uma resolução sem demora da crise bancária, uma mudança radical da política fiscal por pressão de eleitores não centristas ou uma mudança rápida em direção à políticas de desregulamentação de mercado livre defendidas pelo lobby bancário, efetivamente decretando o fim da “Europa social”.

Destes fatores, apenas a recuperação externa está fora do alcance da elite política europeia e (talvez não por coincidência) a única provável de acontecer.

Publicado originalmente no BBCBrasil

O COLONIALISMO LIBERAL EUROPEU MOSTRA A SUA FACE

O artigo é de Eduardo Febbro, direto de Paris

“Os impérios do Ocidente estão nervosos. A decisão da presidenta argentina de renacionalizar os recursos petrolíferos do país reativou, nos europeus, o ímpeto da ameaça e da desqualificação, assim como a política dos valores em escala variável. O “santo mercado” tem prerrogativas acima de qualquer oposição.

Além da agressiva campanha que se desatou na Espanha em defesa de uma companhia que, na realidade, sequer é espanhola, a União Europeia somou seus votos em respaldo à multinacional. A inesgotável e esgotadora responsável pela diplomacia da UE, Catherine Ashton, advertiu que a decisão argentina “era um muito mau sinal” para os investidores estrangeiros. Por sua vez, o presidente da Comissão Europeia José Miguel Barroso, disse que estava muito “decepcionado” pela medida de Buenos Aires.

O vice-presidente da Comissão Europeia, o italiano Antonio Tajani, sacou um leque de ameaças: “Nossos serviços jurídicos estudam, de acordo com a Espanha, as medidas a adotar. Não se exclui nenhuma opção”, disse. Cúmulo do absurdo, o Parlamento Europeu de Estrasburgo, que reúne os representantes do povo, se presta a votar uma resolução contra a Argentina.

Um traço mais da confusão que leva a uma instituição política, surgida do voto popular, a clamar pelos interesses de uma multinacional. O Parlamento Europeu nada fez para denunciar as empresas do Velho Continente que, em nome da segurança jurídica, investiam e investem seus capitais em países amordaçados por regimes assassinos que, ao mesmo tempo que ofereciam segurança jurídica aos investidores, jogavam seus povos no poço da repressão, da corrupção, do assassinato das liberdades e da pobreza. A defesa dos interesses nacionais contra os do mercado é algo que ficou na garganta da muito liberal União Europeia.

A UE revisitou seus “valores” recentemente, no ano passado: em troca da ajuda aos países árabes, a UE pede eleições democráticas, luta contra a corrupção, abertura comercial e proteção dos investimentos. Antes, não lhe importava que um punhado de ditadores e autocratas esmagassem seus povos enquanto a abertura comercial e a proteção dos investimentos estivessem garantidas. A fonte da democracia fechava os olhos enquanto suas empresas pudessem operar a seu bel-prazer.

A mesma dupla linguagem, duplo valor, envolve a escandalosa política das subvenções agrícolas da UE. Instrumento de destruição dos mercados, perverso mecanismo de falsificação dos preços internacionais, as subvenções se aplicam em apoio a uma corporação, a dos agricultores. Pouco importa que o planeta pague pela proteção de um setor. O porta-voz do Comissário Europeu para o comércio, John Clancy, disse ao canal “EuroNews” que a decisão da presidenta “destrói a estabilidade que os investidores procuram”.

Tocar numa empresa europeia é sinônimo de uma declaração de guerra ou de pisotear a identidade. Hoje, reúnem o Parlamento Europeu. Em outras épocas, talvez tivessem enviado a marinha para bloquear o porto de Buenos Aires como ocorreu em 1834, quando Juan Manuel de Rosas se negou a que os súditos franceses ficassem isentos de suas obrigações militares e decidiu impor um gravame de 25% às mercadorias que chegavam do exterior com destino a Buenos Aires.

A imprensa europeia e os analistas propagam um cúmulo alucinante de omissões e mentiras. Frases como “nacionalismo petroleiro” ou “tentação intervencionista” do Estado argentino, se tornaram uma consigna repetida em todas as colunas. Como se qualificaria, então, a defesa de uma empresa por parte das instituições políticas da União? Euronacionalismo de mercado, escudo político para os interesses privados, etnocentrismo liberal?

E, assim mesmo, o discurso do nacional contra o global, do local contra o multilateral não é uma exclusividade peronista. O próprio presidente francês, Nicolas Sarkozy, o reativou com vigoroso discurso durante a campanha eleitoral para as eleições presidenciais do dia 22 de abril (amanhã) e seis de maio (primeiro e segundo turno). O presidente candidato propôs renegociar o “Acordo de Schengen” que regula e garante a livre circulação das pessoas e revisar os acordos comerciais que ligam os 27 países membros da União Europeia.

No primeiro caso, e por razões claramente eleitorais, Sarkozy considera que os acordos de Schengen não permitem regular para baixo os fluxos migratórios. No segundo, que tem dois capítulos, se trata primeiro de instaurar na Europa um mecanismo similar ao “Buy Act American” com um “Buy European Act” a fim de que as empresas que produzem na Europa obtenham dinheiro público em caso de licitações. Em segundo lugar, Sarkozy exigiu à Comissão Europeia que imponha um critério de reciprocidade a seus sócios comerciais. Sarkozy disse em seu discurso: “A Europa não pode ser a única região do mundo que não se defende. (…). Não podemos ser vítimas dos países mais fortes do mundo”.Isso pode ter vigência também para o resto do planeta. O patriotismo europeu bem vale o suposto “patriotismo petroleiro”. Ali onde se encontra em desvantagem, a UE impõe seus limites, ativa seu lobby ou bota suas instituições democráticas a atuar como polícia moralizadora. O livre comércio e o direito monárquico das empresas sobre os recursos naturais, a vida humana e as geografias não é o último estado da humanidade. Há vida depois de tudo, antes e depois da Repsol.Todo o aparato jurídico da UE se colocou em marcha para sancionar isso que o jornal espanhol El País chama “o vírus expropriador” de Cristina Fernández de Kirchner. O “vírus” do mercado global começa a fazer seu trabalho. A UE está ofendida. Tocaram em seu filho pródigo: a liberdade de brincar com o destino dos povos em benefício de suas empresas. Uma guerra moderna onde o gigante vai sancionar um sócio que deixou de apostar em um tabuleiro onde só ganham os capitais que se volatilizam como os valores democráticos e de justiça que defenda a sacrossanta União. Seu hino à liberdade é geométrico. Enquanto a grana encha seus bancos, o sangue pode correr, como na Tunísia, Líbia, Egito e tantas outras ditaduras africanas que proporcionam o petróleo para acender as luzes de um século cujo destino está em mãos privadas e suas instituições às ordens das entidades financeiras e das empresas.”

FONTE: artigo de Eduardo Febbro, direto de Paris, publicado no site “Carta Maior” com tradução de Libório Junior  (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19996) [Imagem do Google adicionada por este blog ‘democracia&política’].DEMOCRACIA E POLÍTICA

Para onde vão as multidões?

DEBATE ABERTO – Carta Maior

Protestos no Oriente Médio, na Europa e no Chile têm como motivação principal a disputa por quem paga a conta da crise mundial. Mas as generalizações param por aí. Há especificidades importantes em cada país. Acima de tudo é preciso atentar para o sentido das manifestações

Gilberto Maringoni

O ano de 2011 pode ficar marcado como aquele em que as multidões voltaram às ruas de forma vigorosa em diversas partes do mundo. O ano começou com o levante na Tunísia, que derrubou o presidente Ben Ali, passou pelas maciças concentrações na praça Tahrir, que culminaram com a queda de Hosni Mubarak e espalharam-se pela Argélia, Iêmen, Bahrein, Kwait e alcançaram Israel. A Líbia não entra na conta, pois o aspecto dominante na queda de Kadafi não foram inquietações internas, mas a invasão da OTAN. Milhões também se mobilizaram na Grécia, Espanha, Islândia, Portugal e Inglaterra. No Chile, após mais de dois meses de enormes protestos, os trabalhadores se uniram aos estudantes e deflagraram uma inédita greve geral, com a participação de diversas categorias profissionais.

Desde 1968 o mundo não assistia uma onda de levantes e marchas populares de tamanha envergadura. Ao mesmo tempo, apesar da proximidade no tempo, é difícil falar em “onda global” de protestos. Avaliar que imensos contingentes decidiram “votar com os pés”, numa expressão de Lênin, em protesto contra a “globalização neoliberal” é uma generalização de pouca valia. Em última instância tudo pode ser debitado no grande cesto da crise internacional, da pauperização acelerada da população e da submissão dos governos ao chamado “mercado”.

No entanto, mais do que nunca, olhar para os detalhes é fundamental. Até porque os países atingidos são muito distintos entre si.

Periferia e centro
As reações populares atingiram a periferia e o centro do sistema. Há diferenças mesmo entre os países do Oriente Médio. O Egito (84 milhões de habitantes, PIB de US$ 579 bilhões, PIB per capita de US$ 7,2 mil e 101º. no IDH-ONU) e a Tunísia (10,5 milhões de habitantes, PIB de US$ 53,2 bilhões, PIB per capita de US$ 5 mil e 81º.no IDH-ONU) são países pobres, com alta concentração de renda e socialmente instáveis. A Espanha (47 milhões de habitantes, PIB de US$ 1,48 trilhões, PIB per capita US$ 32 mil, 20º. no IDH ONU) e a Inglaterra (51 milhões de habitantes, PIB de US$ 2,27 trilhões, PIB per capita US$ 39,5 mil e 28º no IDH ONU) representam o chamado “mundo rico”. Israel (7,5 milhões de habitantes, PIB US$ 210 bilhões, PIB per capita de US$ 28 mil e 15º no IDH ONU) e Grécia (12 milhões de habitantes, PIB de US$ 310 bilhões, PIB per capita de US$ 27 mil e 22º no IDH ONU) apresentam formalmente indicadores próximos aos da Europa Ocidental. Todos os dados têm por fonte o FMI (http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2011/01/weodata/download.aspx) e a ONU (http://hdr.undp.org/en/media/HDR_2010_PT_Tables_reprint.pdf).

Na Tunísia e no Egito, o empobrecimento das maiorias, com altíssimas taxas de desemprego, foi rapidamente associado às antigas ditaduras locais. Na Grécia, o alvo visível foi o Parlamento. Na Espanha, aconteceu o fenômeno mais preocupante: após gigantescas manifestações que se arrastaram por várias semanas nas grandes cidades, a direita venceu as eleições municipais de 22 de maio. O Partido Popular obteve 37,58% dos votos contra 27,81% dos votos do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), de José Luiz Zapatero. 33,7% dos eleitores não foram votar, o que equivale a cerca de 11 milhões de pessoas. Madri, entre outras, agora está nas mãos de conservadores que não escondem suas simpatias pela ditadura franquista (1938-75). Vários ativistas fizeram campanha pelo direito de não votar, como forma de protesto.

No caso inglês, os protestos aconteceram em regiões pobres da capital e de grandes cidades, com forte concentração de imigrantes. Ali o quadro se configura como uma grande catarse social diante de uma situação de precarização prolongada.

Forças organizadas
Nas ditaduras do Oriente Médio, os longos anos de repressão impediram o surgimento de forças populares organizadas de grande envergadura.

Expressão disso é que a formidável ebulição da praça Tahrir não apresentava lideranças claras. Um dos que buscou, sem sucesso, ficar a cavaleiro da situação foi o diplomata Mohamed El Baradei, de regresso ao país depois de três décadas no exterior. Como o Facebook foi um dos meios de comunicação dos rebeldes, chamaram até o representante local da rede social para falar à multidão. Entre outras organizações, a Irmandade Muçulmana foi acusada de estar por trás de tudo. Nenhum dos três atores parecia representar uma síntese orgânica da rebelião. Mesmo assim, multidões voltaram à praça nas últimas semanas.

O caso egípcio e o espanhol foram saudados por alguns como exemplo de mobilização horizontal, sem burocracias partidárias ou sindicais a tirar proveito da situação. O que parece ser uma vantagem tem se afigurado como problema. O viés contra a política institucional, no caso espanhol é claro. O desgaste dos partidos políticos – imersos em financiamentos milionários de campanha que atrelam governos cada vez mais a interesses privados – afasta o debate de alternativas reais às disputas sociais.

Socialismo conservador
O que seria um hipotético partido de esquerda, o PSOE, aplica desde os anos 1980 as medidas ultraliberais na Espanha com maior afinco que a direita tradicional. Daí o desalento e o afastamento da juventude em relação à política institucional. Várias das demandas clamam por uma democracia direta, acima de partidos e organizações tradicionais. Nunca parece ter sido tão grande a distância entre as ruas e o poder político, formalmente democrático.

Apesar do viés preocupante, não há dúvidas que as mobilizações têm representado enorme alento em um continente tomado por governos de direita e socialmente regressivos.

Uma lógica política institucionalizada só é mudada em casos extremos de rupturas por forças que se sobreponham ao status quo. Apesar da palavra “revolução” ter sido usada à exaustão para classificar os eventos árabes e europeus, não parece haver nada lá que se aproxime de algo dessa magnitude.

Diferencial chileno
O caso chileno parece ter certa distinção em relação aos anteriores. Isso se dá não apenas pela impressionante envergadura das atividades, mas por seu grau de organização. Não se trata mais de jornadas estudantis, mas de uma onda de protestos que passou a envolver a maioria dos trabalhadores urbanos, com forte apoio da opinião pública. A expressão disso foi a greve geral de 24 e 25 de agosto.

Na cabeça das agitações estão a Federação de Estudantes do Chile (Fech) e entidades do funcionalismo público (dirigidas majoritariamente pelo Partido Comunista) e a Central Unitária dos Trabalhadores (hegemonizada pelo Partido Socialista). Vale notar que a CUT sofreu, nos últimos anos, um processo de divisões e defecções por conta de seu apoio aos governos da Concertação (aliança PS-Democracia Cristã), que dirigiu o país entre 1990 e 2010 e deixou intocadas as estruturas econômicas da ditadura pinochetista (1973-89). A adesão da Central às manifestações, demandando mudanças na legislação trabalhista da ditadura, é também uma forma de superar seus desgastes.

O que era inicialmente um protesto contra altas taxas das universidades, todas particulares, se transformou em demanda contra a privatização dos serviços públicos e contra a crescente desigualdade social. Com 17 milhões de habitantes, PIB de US$ 162 bilhões, PIB per capita de US$ 9,5 mil e 44º lugar no IDH da ONU, o Chile é um dos que apresenta menor investimento público em saúde (2,2%) na América do Sul. O desemprego atingiu o pico de 9,7% em 2009.

Nada indica que o Chile fará uma revolução a partir das manifestações. A marca distintiva é que elas parecem concentrar suas energias nas organizações existentes e consegue potencializar a força dos protestos.

Limites do espontaneísmo
É sempre bom lembrar a história brasileira dos anos 1980-90 para ver as possibilidades da organização política e social e os limites das manifestações espontâneas e com demandas vagas, saudadas por alguns como “democráticas” e “não burocráticas”.

O Brasil dos anos 1980 assistiu às maiores mobilizações de massa de sua história. O movimento estudantil, as greves operárias e as Diretas Já geraram saldos organizativos que se materializaram na construção de partidos de esquerda – PT incluído – entidades democráticas – UNE, CUT, MST entre outras – e mudanças sensíveis expressas na Constituição de 1988. Não se discute aqui o transformismo conservador vivido por parcela desses organismos nos anos recentes. Havia demandas claras por democracia e conquista de direitos sociais, em boa medida vitoriosas.

No início da década seguinte, multidões voltaram às ruas. Dessa vez, o alvo eram os desmandos do governo Collor. A voz das ruas falou mais alto e o presidente teve de renunciar em 2 de outubro de 1992. No dia seguinte, houve eleições municipais em todo o país. Em São Paulo, a população deu vitória ao candidato da direita, Paulo Maluf, que enfrentava Eduardo Suplicy, do PT, agremiação que estivera à frente dos protestos. Guardadas as proporções, Collor e Maluf eram expressões do mesmo projeto político.

Os resultados eleitorais ainda suscitam polêmicas. Mas no centro estava o fato de a campanha contra Collor foi realizada com base num moralismo anticorrupção que, embora indignasse a população, não deixou saldos políticos. Sobre o projeto ultraliberal do governo, quase nada foi dito.

No Oriente Médio governos foram derrubados e na Europa os indignados podem voltar a marchar. Tomara que a disputa entre no decisivo terreno da política.

Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).

O empobrecimento das famílias na Espanha

Por mcn – Da BBC Brasil

Crise cria classe de novos pobres na Espanha

Anelise Infante

De Madri para a BBC Brasil

Desempregada espanhola pede ajuda em rua de Pamplona

Segundo pesquisa, 11% das famílias espanholas têm todos seus integrantes desempregados

A crise econômica vem causando uma perigosa mudança social na Espanha, empurrando de volta para a pobreza uma classe de pessoas que até então vinha ascendendo economicamente.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), mais de um em cada cinco espanhóis – 21% da população, ou cerca de 10 milhões de pessoas – era classificado como pobre em julho, e analistas estimam que este índice chegue a 22% até o fim do ano. Em 1991, era de 14%.

O governo espanhol considera pobres os indivíduos com renda familiar abaixo de 570 euros mensais (cerca de R$ 1.300). As famílias com renda inferior a 215 euros (cerca de R$ 490) são consideradas na pobreza extrema.

Uma de cada quatro famílias não tem dinheiro o suficiente para saldar as dívidas no fim do mês.

A pesquisa estatal sobre a população economicamente ativa indica que em 2009 havia 4% das famílias com todos os integrantes desempregados. No primeiro trimestre de 2011, a taxa alcançou 11%.

Os serviços sociais estão sobrecarregados. Há quase 30 anos não havia tanta demanda.

Perfil

E o que mais chama a atenção dos pesquisadores é o perfil da nova classe. Os solicitantes de auxílio são geralmente trabalhadores entre 20 e 40 anos, alguns com formação profissional, que antes da crise tinham imóveis e bons salários.

“Com a falta de ofertas de trabalho, eles passaram a ser desempregados de longo prazo. Trata-se de uma crise que está mudando a vida das pessoas de maneira radical”, disse à BBC Brasil o Secretário Geral da ONG Cáritas-Espanha, Sebastián Mora.

O responsável pela área de assistência social da igreja Católica explicou que nas décadas passadas a Cáritas ajudava indigentes, ciganos e imigrantes sem família na Espanha. Agora, estas ajudas se dividem entre imigrantes (60%) e espanhóis (40%) que até pouco tempo atrás pertenciam à classe média.

“Tinham créditos bancários para pagar casas e carros e não sobravam recursos para economizar. Hoje solicitam caridade envergonhados. Jamais pensaram que passariam por isso”, afirmou Mora.

Solicitação de ajuda

Desempregados em fila para seguro desemprego em Madri

O relatório Observatório da Realidade Social, feito pela Cáritas, mostra que os pedidos de ajuda mais que dobraram em quatro anos. De 950 mil pessoas atendidas em 2010, 35% recorreram ao auxilio de caridade pela primeira vez.

Segundo a instituição religiosa, estes novos pobres usam quase tudo que obtêm através de ajudas do governo para pagar aluguéis ou créditos bancários, o que não deixa o suficiente para contas, comida e roupa.

As crianças são as principais vítimas desta situação. Em novembro de 2010, a Unicef divulgou um relatório sobre a pobreza infantil denunciando que um de cada quatro menores na Espanha pertence a uma família cuja renda está 60% abaixo da média nacional.

Este índice coloca a Espanha quase na lanterninha das nações da União Europeia. No grupo dos 27 países do euro, apenas Romênia, Bulgária, Letônia e Itália têm taxas inferiores.

O Instituto Nacional de Estatística confirma os dados. No segundo trimestre de 2011, quase 2 milhões de menores de idade (24,1% do total) moravam em casas onde faltavam elementos básicos.

O governo admitiu que terá que revisar o sistema de benefícios, porque as contribuições estão sendo insuficientes, os recursos humanos estão sobrecarregados e alguns problemas burocráticos atingem pessoas em situação insustentável.

A fila é tão grande que o tempo de espera para atendimento em uma seção de assistência social pública é de 65 dias. Em instituições de caridade, como a Cáritas, o prazo cai para uma semana.

Falsa classe média

As estatísticas da Espanha atual contrastam com a de um país que até seis anos atrás criava 500 mil empregos por ano e que, em uma década de prosperidade, importou 5 milhões de imigrantes.

“A verdade é que vivíamos uma bonança que não correspondia à economia real”, disse à BBC Brasil o professor de Economia Aplicada da Universidade Complutense de Madri Ignácio Alvarez.

“Não era lógico que as empreiteiras espanholas produzissem mais do que Reino Unido, Alemanha e França juntos a cada ano. Quando estourou a bolha da construção, percebeu-se como os valores de certos ativos, como imóveis, estavam inflados. Agora o caminho é reinventar o modelo produtivo.”

Segundo o Barômetro Social Nacional, com o boom do setor da construção o PIB da Espanha cresceu mais de 60% nos últimos 15 anos.

Entre 1994 e 2007 os imóveis se valorizaram 175% e os valores de ações e ativos financeiros subiram 130%.

A socióloga Violante Martínez, professora da Universidade à Distância (Uned), avalia que quem se beneficiou muito dessa bonança também entrou em queda livre com ela.

“Trabalhadores que antes da crise tinham um status econômico acima do seu nível de formação ascenderam bruscamente. Agora seus negócios quebraram e eles estão endividados”, afirmou.

“Mas são pobres transitórios. Terão que reconduzir sua economia e viver em outra realidade, mas certamente sairão deste baque.”

Publicado por luisnassif, em advivo Luiz Nassif on Line

O capitalismo bestial ataca nas ruas (via @IHU)

O thatcherismo despertou os instintos bestiais do capitalismo (o “espírito animal” do empreendedor, como o chamam timidamente) e, desde então, nada surgiu que os domasse. Destruir e queimar é hoje a palavra de ordem das classes dominantes, de fato, em todo o mundo. Todos, não só os jovens agitadores, devem ser responsabilizados. O capitalismo bestial deve ser levado a julgamento por crimes contra a humanidade, tanto quanto por crimes contra a natureza. O comentário é de David Harvey em artigo publicado no blog do autor e traduzido e reproduzido pelo sítio esquerda.net, 14-08-2011.

Eis o artigo.

“Adolescentes niilistas e bestiais”. Foi como o Daily Mail os apresentou: os jovens enlouquecidos, vindos de todas as vias da vida, que correram pelas ruas sem pensar, atirando desesperadamente tijolos, pedras e garrafas contra os polícias, saqueando aqui, incendiando ali, levando as autoridades a uma também enlouquecida caçada de salve-se quem puder/agarre o que conseguir, enquanto os jovens iam alterando os seus alvos estratégicos, saltando de um para outro.

A palavra “bestial” saltou-me à vista. Lembrou-me que os communards em Paris em 1871 foram mostrados como animais selvagens, como hienas, que mereciam ser (como foram, em vários casos) sumariamente executados, em nome da santidade da propriedade privada, da moralidade, da religião e da família. Mas em seguida a palavra trouxe-me outra associação: Tony Blair atacando os “média bestiais”, depois de ter vivido durante tanto tempo confortavelmente alojado no bolso esquerdo de Rupert Murdoch, até que Murdoch meteu a mão no bolso direito e de lá tirou David Cameron.

Evidentemente haverá o debate histérico de sempre entre os sempre prontos a ver a agitação das ruas como questão de pura, simples e imperdoável criminalidade, e os ansiosos por contextualizar eventos em termos de polícia incompetente; de eterno racismo e injustificada perseguição aos jovens e às minorias; de desemprego em massa entre os jovens; de pauperização incontrolável da sociedade; de uma política autista de austeridade que nada tem a ver com a economia e tudo tem a ver com a perpetuação e a consolidação da riqueza e do poder individuais. Haverá até quem condene o sem sentido e a alienação de tantos trabalhos e empregos e tal desperdício da vida de todos os dias, de tão imenso, mas desigualmente distribuído, potencial para o florescimento humano.

Se tivermos sorte, haverá comissões e relatórios que dirão tudo, outra vez, que já foi dito sobre Brixton e Toxteth nos anos Thatcher. Digo “sorte”, porque os instintos bestiais do atual primeiro-ministro parecem tender mais a mandar usar canhões de água, a convocar a brigada do gás lacrimogêneo e a usar balas revestidas de borracha, ao mesmo tempo em que ele untuosamente pontifica sobre a perda da bússola moral, o declínio da civilidade e a triste deterioração dos valores da família e da disciplina entre os jovens sem lar.

Mas o problema é que vivemos em sociedade na qual o próprio capitalismo se tornou desenfreadamente fera. Políticos-feras mentem nos gastos, banqueiros-feras assaltam a bolsa pública até ao último vintém, altos executivos, operadores de hedge fundse génios do lucro privado saqueiam o mundo dos ricos, empresas de telemóveis e cartões de crédito cobram misteriosas tarifas nas contas de todos, empresas de retalho aumentam os preços, por baixo do chapéu artistas vigaristas e golpistas aplicam os seus golpes até entre os mais altos escalões do mundo corporativo e político.

Uma economia política de saque das massas, de práticas predatórias que chegam ao assalto à luz do dia, sempre contra os mais pobres e vulneráveis, os simples e desprotegidos pela lei – isso é hoje a ordem do dia. Alguém ainda crê que seja possível encontrar um capitalista honesto, um banqueiro honesto, um político honesto, um comerciante honesto ou um delegado de polícia honesto? Sim, existem. Mas só como minoria, que todos os demais consideram idiotas. Seja esperto. Passe a mão no lucro fácil. Fraude, roube! A probabilidade de ser apanhado é baixa. E em qualquer caso, há muitos meios para proteger a fortuna pessoal e impedir que seja tocada pelos golpes das corporações.

Tudo isso, dito assim, talvez choque. Muitos de nós não vemos, porque não queremos ver. Claro que nenhum político se atreve a dizer estas coisas e a imprensa só publicaria, se algum dia publicasse, para escarnecer de quem dissesse. Mas acho que todos os que correm pelas ruas agitando a cidade sabem exatamente a que me refiro. Estão fazendo o que todos fazem, embora de modo diferente – mais flagrante, mais visível, nas ruas. O thatcherismo despertou os instintos bestiais do capitalismo (o “espírito animal” do empreendedor, como o chamam timidamente) e, desde então, nada surgiu que os domasse. Destruir e queimar é hoje a palavra de ordem das classes dominantes, de fato, em todo o mundo.

Essa é a nova normalidade sob a qual vivemos. Isso deveria preocupar o presidente do inquérito que rapidamente será nomeado. Todos, não só os jovens agitadores, devem ser responsabilizados. O capitalismo bestial deve ser levado a julgamento por crimes contra a humanidade, tanto quanto por crimes contra a natureza.

Infelizmente, isso é o que os agitadores nem vêem nem exigem. Tudo conspira para nos impedir de ver ou exigir exactamente isso. Por isso o poder político tão facilmente se traveste na roupagem da moralidade e de uma razão repugnante, de modo que ninguém veja a corrupção nua e a irracional estupidez.

Mas há réstias de esperança e luz em todo o mundo. O movimento dos indignados na Espanha e na Grécia, os impulsos revolucionários na América Latina, os movimentos camponeses na Ásia, todos esses começam a ver através da imundície que o capitalismo global, predatório, bestial lançou sobre o mundo. O que ainda falta para que todos vejamos e comecemos a agir? Como se poderá começar tudo outra vez? Que rumo tomar? As respostas não são fáceis. Mas uma coisa já se sabe: só chegaremos às respostas certas, se fizermos as perguntas certas.

Para ler mais:

Galeano: O mundo está dividido entre os indignos e os indignados


(via@Ousarlutar!!Ousarvencer!!)

Publicado originalmente pela Revista Fórum

Confira abaixo a íntegra da entrevista concedida por Eduardo Galeano ao programa Singulars, de TV3, no dia 23 de maio. Ali, ele conta as suas impressões ao se deparar com a Espanha dos “Indignados”, fala sobre a crise do sistema econômico e político institucional e também comenta a respeito de futebol. Sobre as manifestações, ele acredita que “são os invisíveis se fazendo visíveis, e os que pareciam mudos fazendo-se escutar. E estão dizendo aquilo que têm que dizer. E neste mundo em que todos falam sem dizer, eles dizem dizendo.”
Eduardo, você chega e encontra as praças cheias de gente gritando “outra democracia é possível!”. Que te parece?
Eduardo Galeano – Me parece uma experiência estupenda. A verdade é que foi muito emocionante, para mim, estar entre essas pessoas quando cheguei a Madrid e recuperar esta energia, este entusiasmo. Esta vitamina “E” de entusiasmo, que às vezes parecia perdida neste mundo que nos convida ao desânimo. Então acho que é uma experiência estupenda, e segue sendo, e a palavra entusiasmo é uma palavra linda, de origem grega, que significa “ter os deuses aqui dentro”. E isto foi o que senti quando perambulava entre as pessoas na Puerta del Sol.
“Nos tiraram a justiça, e nos deixaram a lei.” Esta é uma das frases que você pode ler na Puerta del Sol. Que lei nos deixaram, senhor Galeano?
Galeano – A lei do mais forte. É esta lei que rege hoje o mundo, dentro de cada país e entre os países também, e é uma lei insuportável. Parece hoje que os jovens vêm crescendo em matéria de desobediência contra esta lei que os condena à resignação, à aceitação do mundo tal qual é. E hoje há na América Latina toda, ou quase toda, um problema visível e preocupante que é o divórcio, a separação – eu diria que é um divórcio – entre os jovens, as novas gerações, e o sistema político e o de partidos vigente. Eu não reduziria a política às atividades dos partidos, porque a política vai muito além. Mas, sim, me preocupa que, por exemplo, nas últimas eleições chilenas dois milhões de jovens não tenham votado. E não votaram porque não se deram ao trabalho de se registrar e porque, no fundo, não creem nisto. Suponho que, principalmente, por não acreditarem nisto. E me parece que isto não é culpa dos jovens, é muito fácil culpá-los, mas a questão vem de cima, está concentrada no topo, e a estes não importa nada de nada. E também nesse sentido gostei de estar nas manifestações, pelo menos na da Puerta del Sol que foi onde pude estar.
Sabe quanta gente não votou ontem na Espanha?
Galeano – Não, não imagino.
Dez milhões de pessoas não não foram votar.
Galeano – Bem, é grave, não?
Mas também é um direito não votar, certo?
Galeano – Claro, claro que sim. E é também, por vezes, um modo silencioso de protesto. E também acho legítimo que as pessoas se expressem falando ou calando, pois o silêncio às vezes diz mais que as palavras. E o que eu gostei foi ver toda esta ebulição de um protesto pacífico, sem violência, como o que vi circulando entre a gente nas diferentes horas do dia, e da noite também. Muito solidariamente, unidos em uma causa comum, e sustentado com convicção a partir da situação tão penosa que vivem hoje na Espanha e em muitos outros lugares do mundo sobretudo os jovens, e, sobretudo os jovens que não têm uma posição, digamos, acomodada. Lá no Sol diziam “Com causa, mas sem casa!”, e isso me pareceu revelador, porque uma boa parte das pessoas que estão ali ficaram sem casa e sem trabalho. Isto é uma coisa a ser levada em conta.
O que está acontecendo neste momento, em distintos países europeus – e eu suponho que no seu mundo, a América Latina, também, mas conheço mais a situação europeia – é que o povo está dizendo “Basta!”, algo tão claro como nós, pais, dizendo que nossos filhos não terão o mesmo que nós. E tão claro como nós vemos que isto que nós temos é graças à luta que, em seus momentos, lutaram nossos pais e avós com sangue, suor e lágrimas, e conseguiram os direitos que nós, como pais, não podemos dar a nossos filhos.
Galeano – Claro, este é um dos dramas do mundo em nosso tempo, internacionalmente. Dois séculos de lutas operárias que conquistaram direitos muito importantes para as classes trabalhadoras, para os que trabalham, estão sendo descartados, jogados no lixo, por governos que obedecem a uma tecnocracia que se crê eleita pelos deuses para comandar o mundo, esta espécie de governo dos governos. Como este senhor que ultimamente se dedicou a violar camareiras, mas antes violava países e era aplaudido enquanto o fazia e não foi preso por isso. Ele teria que ter sido preso pelas duas coisas, não só pelas camareiras. É esta estrutura de poder que às vezes é invisível e que, no fundo, controla tudo. Então, quando se consegue aglutinar vozes capazes de dizer “Basta!” ou “Não, chega!”, a primeira coisa que se deve fazer é escutar estas vozes, com respeito, sem desqualificá-las de antemão, e saber esperar para ver o que é que a vida quer viver. Estas pessoas não parecem esperar ordens de ninguém, atuam espontaneamente, unindo a razão à emoção. Alguns me perguntam “Como vai acabar isso?” e eu digo “Não sei como vai acabar, talvez nem acabe. E se acabar, aí veremos”. É como o amor que é infinito enquanto dura.
Sabe… O senhor, Eduardo Galeano, com José Luis Sampedro e Arcadi Oliveres, são referentes internacionais de pessoas que, em seu momento, já há bastantes anos, disseram “Basta!”. E Sampedro, muito maior, mas muito jovem, este fim de semana fez uma declaração, não me recordo exatamente, mas era algo assim: “As batalhas, temos que erguê-las e lutá-las. Se ganham, ou se perdem, mas temos que lutá-las. Por que este ato solitário de erguê-las, e de lutá-las, é o que as torna tão valiosas.”
Galeano – Ele é um querido amigo pessoal, e eu o respeito muito. E isto é verdade. Estamos também enfermos de existir. O mundo está preso em um sistema de valores que coloca o sucesso acima de tudo, e, por outro lado, condena o fracasso. Perder é o único pecado que no mundo de hoje não tem redenção. Estamos condenados a ganhar ou ganhar. E, bem, ao longo da história muitas pessoas melhores perderam, e isso não lhes tira nem um pouco a razão. Os dois homens mais justos na história da humanidade, Sócrates e Jesus, morreram condenados pela justiça. Os mais justos foram condenados pela justiça. E não deixam de ser justos.
E nos deixaram a lei.
Galeano – E nos deixaram coisas muito importantes. Em primeiro lugar, amor e coragem.
A santíssima trindade, também chamada de Standard & Poor’s, Moody’s e Fitch, são as agências que qualificam os riscos. Hoje, elas estão fazendo cair as bolsas e o euro, na Europa, porque voltaram a baixar a qualificação da dívida grega. Quem são estas agências? E a quem obedecem?
Galeano – Segundo minha mulher, Helena Villagra, são “As Meninas Superpoderosas”. Eram personagens de um desenho que passava há não muito tempo. Então são estas meninas, que se consideram no direito de classificar e qualificar os países, e dizer se este ou aquele país está indo por um bom caminho, que é sempre o caminho da obediência às ordens ditadas por um sistema que é sempre inimigo do povo. E são dirigidas por tecnocratas que mandam mais que os governos. Ninguém os elegeu, em nenhuma eleição. Que eu saiba, ninguém votou na Standard & Poor’s – que, se não estou equivocado, significa Médios e Pobres.
Mas você conhece os crimes que cometeram estas agências? Eu entendo quando alguém se equivoca porque se equivoca, sem querer. Mas elas estão destruindo países inteiros, estão jogando contra países inteiros, e ninguém diz nada!
Galeano – E os banqueiros de Wall Street, que foram os principais protagonistas desta crise, que provavelmente é a crise mais grave que o mundo já sofreu em muitos séculos de história, talvez a maior fraude já cometida. E nenhum destes banqueiros foi preso. Vão presos os ladrões de galinhas, mas os banqueiros superpoderosos, como as meninas superpoderosas, estes não vão presos nunca. E cometem crimes de desumanidade. Eu vi agora que o Tribunal Penal Internacional quer julgar Kaddafi. Sabemos que não é nenhum santo e que seguramente merece ser julgado, mas muito mais merecem ser julgados estes senhores que arruinaram o planeta.
E que hoje nos cobram mais que ontem.
Galeano – E que foram recompensados. Eu havia até proposto uma campanha, quando via os pobres banqueiros chorando suas misérias, este desastre, e junto com outros companheiros nós articulamos uma campanha que não teve muito êxito: “Adote um banqueiro”. Vê-se que o mundo tem um mau coração, ninguém o fez.
Eduardo Galeano, como acha que se explica porque nestas reuniões de G20, G8, G1040 – todos dão na mesma –, por que nenhum mandatário, por que nenhum governante, e há alguns das esquerdas, por que nenhum deles se levanta e diz “Basta, acabou! Este mundo não é possível! Eu não vou condenar meus concidadãos à miséria. Não! Basta!” Por que não há nenhum que se levanta, por quê?
Galeano – Há alguns que se levantaram.
No G20?!
Galeano – Não, não, fora do G20. No “G-7 bilhões”, que é esse que abarca a humanidade inteira. Uns tantos se levantaram e disseram “Basta!” e por isso foram condenados ao inferno, claro. Por exemplo, me recordo quando o presidente do Equador, Correa, anunciou que não iria pagar a dívida, que não era legítima. Ou seja, que havia nascido de uma armadilha, de uma fraude, de uma violência. E o mundo se doeu: “Mas como? O Equador vai acabar, esse país vai naufragar. Como é que alguém se atreve?”. E não se acabou nada, porque era perfeitamente legítima a decisão de não pagar as dívidas ilegítimas, que são as que estrangulam a maior parte dos países, sobretudo os países mais pobres.
Então, você vê, o problema é que não falta quem o diga, mas sim, digamos, que… Há um sistema que absolve ou condena segundo a boa ou má conduta dos diferentes governos. Mas às vezes as lições de vida, as lições de dignidade que o mundo necessita são dadas pelos menores. Por exemplo, a Islândia. A Islândia é um país minúsculo, perdido aí nos mares do norte do mundo, habitado por pouca gente – não sei, cerca de 150 mil pessoas, algo assim –, e foi o que mais claramente disse “Não”, nestas circunstâncias muito difíceis, ao Fundo Monetários Internacional e à ditadura financeira do mundo, em dois plebiscitos. Porque o FMI e a UE já haviam dado a ordem à Islândia de que a população, ou seja, os islandeses, teriam que pagar a bancarrota de três bancos de lá, dois bancos muito importantes e outro não tanto, que tinham recebido depósitos de outros países e não podiam pagá-los, e, portanto, a população deveria pagar 12 mil euros per capita. Ou seja, cada cidadão deveria pagar 12 mil euros pela bancarrota dos bancos! Eu não digo que todos os banqueiros sejam delinquentes, mas há banqueiros que são os assaltantes de bancos mais perigosos que há. Eles não carregam nenhuma arma, nem avisam que estão entrando, porque, afinal de contas, estão entrando em suas “casas”. Mas estes são os mais perigosos. E a população da Islândia foi capaz de dizer “Não! Não aceitamos”, e então se fez um plebiscito.
Mas, como para o FMI e para a UE não pareceu ser suficiente, fizeram outro. E ganharam os dois. A Islândia se negou a aceitar como destino a obediência. E afinal, defenderam dignidade humana. Porque este movimento não é o movimento tão lindo, que me encanta ver. Este se chama Movimento dos Indignados, e eles não se equivocam com este nome, porque afinal o mundo está dividido entre os indignos e os indignados.
A Islândia disse “Não!” aos mercados. Nós, jornalistas, dizemos “os mercados”. Quem são?
Galeano – Sim, os mercados… É um termo que se usa. Na infância, era uma palavra lindíssima que dava nome ao local de encontro dos vizinhos do bairro. Com todas as suas cores, das verduras, das frutas, as vozes dos vendedores que vinham até os bairros para vender suas coisas. E era uma palavra muito linda. Mas depois se converteu no nome de um deus invisível e muito cruel, que é este que rege nossos destinos. Então, sempre se diz: “Não, isso não. Vai irritar o mercado!”, porque ele tem humor, este deus. E o mercado manda, mas ninguém sabe muito bem quem é ou do que se trata. É como quando se fala em “comunidade internacional”. “A comunidade Internacional não deveria permitir isto”, a comunidade internacional é um clube de banqueiros e generais, senhores da guerra e senhores do dinheiro que decidem quem é democrata e quem não é, e decidem quem merece o sucesso, e quem merece a desgraça. E, no entanto, ainda há gente que acredita que outro mundo é possível.
Ontem ocorreram na Espanha, como se sabe, eleições locais e regionais e o eleitorado espanhol resolveu, por assim dizer, castigar muito duramente o Partido Socialista Obrero Español (PSOE). Que você acha disso?
Galeano – De fora, não sou ninguém para ditar à Espanha, ou às Espanhas contidas na Espanha, normas de boa ou má conduta, até porque justamente agora eu estava falando contra os sistemas autoritários de poder. E também creio que são autoritários alguns intelectuais que vão dar lições às pessoas nos lugares onde estão visitando. Eu vivi na Catalunha bastantes anos, dez anos, não me considero estrangeiro aqui, mas deve se ter muito cuidado ao julgar ou emitir opiniões a respeito de acontecimentos tão complexos como é uma eleição, nada menos.
Em princípio, me pareceu muito crível uma manchete do Diário Público de hoje, que vi, que dizia que o PSOE havia sido castigado por praticar uma política de direita. Provavelmente algo disso deve ter havido, porque o governo talvez não tivesse mais remédio. Não sei precisamente. Mas sei que sim, a Espanha concordou em fazer coisas que não coincidiam muito com o programa de governo do Partido que segue, contudo, governando a Espanha.
Eu antes fiz uma pergunta dizendo que, para um governante, pode ser cruel, especialmente se o governante luta pra conseguir mais igualdade. Eu disse que nenhum governante se levantava em nenhuma reunião internacional para dizer “Basta!”. Então volto a perguntar: podem fazê-lo? Me refiro ao G20.
Galeano – Eu repito: se o G20 não é capaz de tolerar, admitir e promover a diversidade no mundo, ou seja, se não é capaz de praticar a democracia – porque a democracia é isso, diversidade, escutar todas as vozes, outras vozes, em pé de igualdade –, bem, então é necessário substituir o G20 pelo “G-7 bilhões”, que é esse de toda a humanidade.
E isto como se dará?
Galeano – Não há receita para isso. Eu não conheço, pelo menos. E desconfiaria muito de alguém que quisesse me vender esta receita. São processos muito complexos, muito complicados, e, além disso, a História é uma senhora de ações lentas e andar suave. As coisas não mudam em uma semana ou um mês. É legítima a necessidade humana de que as coisas mudem enquanto estou vivo, claro, eu quero ver estas mudanças. Esta é uma paixão humana completamente compreensível e partilhável. Mas, não condiz com a realidade. A realidade tem seus tempos e o mundo tampouco caminha em linha reta.
A História é lenta, estou de acordo. Mas imagine você estas dezenas de milhares de pessoas que saíram às ruas, que estão ocupando agora mesmo a Plaza Catalunya, aqui em Barcelona, além de outras cidades da Espanha. Quando isto terminar, pois decidiram terminar daqui a algumas semanas, o que vai acontecer? Estes governantes e políticos democrática e legitimamente eleitos vão levar em conta o que foi feito nas praças, o que foi dito nas praças ou não dará em nada?
Galeano – Nada dá em nada quando, digamos, se transmite energia. A energia fica, de alguma maneira. Às vezes se transforma em outra coisa, se arranja de outras maneiras. Mas é muito importante o que está ocorrendo nestas concentrações, que são sobretudo juvenis, mas não somente juvenis. Pois, em última instância, são os invisíveis se fazendo visíveis, e os que pareciam mudos fazendo-se escutar. E estão dizendo aquilo que têm que dizer. E neste mundo em que todos falam sem dizer, eles dizem dizendo. E dizem coisas que vale a pena escutar. E eu acredito que estas vozes vão seguir ressoando. Mas, contudo, não quero ser um otimista profissional porque eu sou otimista de acordo com a hora do dia, às vezes sou muito pessimista. E a esperança é uma coisa que por vezes me cai do bolso, e tenho que buscá-la, descobrir onde ela está, recolher alguns pedacinhos, muitas vezes. Não sou um otimista full time, e, além disto, não acredito em quem é. Em muitos momentos tenho esperança, mas, quando não tenho agarro meus cabelos e rezo pra uma nave espacial me levar pra outro planeta.
Por que você acha que neste último domingo, no Uruguai, se disse “Não” À suspensão da lei de anistia?
Galeano – Sim, este também é um processo complicado de explicar assim. Mas, sim, se perdeu por um voto, uma coisa lamentável. Deve-se acabar com uma lei infame, que é uma lei de impunidade. Eu fui membro das duas comissões que organizaram os dois plebiscitos, e os perdemos. Por muito pouco, mas perdemos. E seguiríamos perdendo, um milhão de vezes. Porque eu não creio que valha a pena viver para ganhar, vale a pena viver para fazer o que tua consciência te diz para fazer. E não o que te convém. E isto vale para tudo, para a política, para a vida, para o amor, futebol. O futebol parece estar agora condenado a jogar pelo dever de ganhar, e não pelo prazer de jogar. Por isso estou muito contente de estar aqui em Barcelona para receber um prêmio de um clube que recuperou o prazer de jogar com beleza e limpamente.
Claro, você vai receber amanhã o Prêmio Manuel Vázquez Montalbán de Jornalismo Esportivo.
Galeano – Sim, e é uma sorte para mim. Sou muito fã de futebol, muitíssimo fã de futebol. E creio que o futebol é um espelho do mundo, que a vida se reflete ali. O melhor e o pior da condição humana estão no campo.
Você é muito fã de futebol, como disse, então suponho que verá este time prodigioso que está fascinando o mundo inteiro, como o Barça, certo?
Galeano – Sim, sim. Eu adoro o Barça, e, além disso, gosto muito de ver o Messi jogando. Vou contar algo que me veio à cabeça agora e que tem relação com isto… Eu estava no México e em uma das intervenções públicas que estive, me permiti sugerir aos meus amigos mexicanos que tivessem cuidado com seu poderoso vizinho do norte que tem o péssimo costume de “salvar” os demais países. E lhes contei que quando vou aos Estados Unidos e faço leituras de meus livros, ou vou às universidades, coisas assim, sempre começo por suplicar para que, por favor, não me “salvem”. Eu não quero ser salvo, e este poderoso vizinho do México “salvou” o Iraque convertendo-o num manicômio, está “salvando” o Afeganistão convertendo-o em um vasto cemitério. Então eu dizia aos mexicanos “Vamos desconfiar dos messianismos, dos messiânicos. O único messianismo que não é perigoso é o que se chama Lionel Messi.”
O que é Messi?
Galeano – É a alegria de jogar. Ele joga como se fosse uma criança na várzea, em um campinho, com essa mesma alegria. Espero que não a perca nunca. Ele é excepcional. Por jogar como profissional, tem que cuidar das pernas de outra maneira, mas ele joga esquecendo de que é o número 1. Ou seja, Lionel Messi não acredita ser Lionel Messi, por sorte.
Guardiola?
Galeano – Merece tudo isto, e repito desde que ele era um grande jogador. Não podemos esquecer de que ele foi um grande jogador antes de ser um grande técnico capaz de organizar uma equipe solidária. Um por todos, todos por um, mas onde todos podem jogar e desfrutar. A verdade é que não digo estas coisas para ficar bem com o lugar onde estou, são coisas que acredito profundamente. Não tenho o costume de elogiar quando me convém.
Você sabe que nestas últimas semanas duas equipes antagônicas, Madri e Barça, se enfrentaram quatro vezes, creio. Você enxerga um estilo diferente no Galeanoeal Madrid, você que é tão fascinado por futebol?
Galeano – Sim. Com Mourinho, sim. Mas o Real Madrid pode muito mais do que tem feito nas mãos deste senhor, que além de tudo é muito antipático, porque é muito arrogante. O médico me proibiu contato com os arrogantes.
O médico proibiu? E há muitos deles?
Galeano – Sim, há muitos deles, e eu não sei lidar!
Eduardo Galeano, outra das frases, ou mensagens, das concentrações nas praças da Catalunha e da Espanha é esta: “Se não nos deixam sonhar, não vos deixaremos dormir!”. E eu vou te pedir agora, espero que aceite, que nos faça sonhar com a leitura de algum de seus fragmentos.
Galeano – Sim. Vou ler algumas palavrinhas que tem a ver com o direito de sonhar, com o direito ao delírio, a partir de algo que me ocorreu em Cartagena das Índias, há algum tempo, quando eu estava na universidade fazendo uma espécie de palestra com um grande amigo, diretor de cinema argentino, Fernando Birri. E então os meninos, os estudantes, faziam perguntas – às vezes a mim, às vezes a ele. E fizeram a ele a mais difícil de todas: um estudante se levantou e perguntou “Para que serve a utopia?”. Eu o olhei com dó, pensando “Uau, o que se diz numa hora dessas?”, e ele respondeu estupendamente, da melhor maneira. Ele disse que a utopia está no horizonte, e disse “Eu sei muito bem que nunca a alcançarei, que seu eu caminhar dez passos, ela ficará dez passos mais longe. Quanto mais eu buscar, menos a encontrarei, porque ela vai se afastando à medida que eu me aproximo”. Boa pergunta, não? Para que serve a utopia? Pois a utopia serve para isso: caminhar.
Já sei que você não vai gostar do que eu vou te perguntar a seguir, mas devo perguntar. Vamos falar um pouco de você. Você tocou em quase todas as teclas: narrativas, crônicas, jornalismo, desenhista.
Galeano – Sim, é verdade. E é verdade também que aquilo que escrevo é inclassificável e isso me dá muita alegria. Porque um dos vícios deste mundo, mundo nosso que nos cabe viver, tem um costume perverso, uma espécie de mania, de colocar uma etiqueta na testa de cada pessoa, talvez para poder manipular melhor a condição humana que, por si, tende à liberdade. Classificar-nos seria uma maneira de nos tornar prisioneiros, então o mesmo acontece com os gêneros literários. E aí é que me encanta não ser classificado, quando dizem “O que é isso que estou lendo? É ensaio, poesia, crônica, é ficção, não-ficção, de que se trata?”, e eu respondo que não tenho a menor ideia e não quero saber do que é isso que faço. Porque eu sigo o conselho que um senhor me deu, estando eu perdido pelas ruas de Cádiz, há um tempo, me perco sempre porque sou muito disperso e não tenho senso de orientação, ou tenho um grande senso de desorientação, pois me perco continuamente. E estava perdido em Cádiz e eu perguntei pelo Mercado Viejo a um senhor que estava contra a parede, apoiado, e sem desencostar ele me disse: “Nada, faça o que a rua te disser!”. E eu faço aquilo que a rua me diz. Na literatura e na vida também.
Transcrição e tradução de Cainã Vidor.